No dia seguinte era
Domingo e, conforme afirmara Paulo Lopes – espécie de agente de ligação daquela
pequena conspiração – deviam reunir-se os três para darem os últimos retoques
no plano de fuga.
Tinham a tarde livre e, além disso,
haviam pedido dispensa de recolher, o que lhes dava uma apreciável liberdade de
acção.
O argentino conduzira Rogério à
cantina, onde, dizia, Alexandre devia juntar-se a eles pelas dezasseis horas.
Para o belga era quase uma honra entrar na intimidade do cabo Alexandre, cuja
sabedoria o enchia de admiração e de timidez. Ia ombrear com aquele homem
misterioso, ser tratado de igual para igual por alguém que, segundo se dizia na
Companhia, poderia ser tudo e se deixava ficar modestamente na sombra de um
quase anonimato.
Estava um tempo magnífico, talvez
demasiado quente. Mas os soldados estavam habituados ao calor africano. De quando em quando, um sopro
escaldante vinha do deserto, como um hálito de fogueira. Trilhando as ruas de
Dar-Riffien, que principiava a tomar forma de cidade, depois de ter sido um
aglomerado de barracas e barracões, Paulo Lopes não parava de falar sobre a
grande aventura, que os iria arrancar, a eles, homens de acção, à monotonia
daquela vida, onde morriam lentamente de tédio.
Rogério escutava-o, embalado na
música daquelas palavras que despertavam na sua alma o aventureiro que, depois
de ter procurado o perigo de Marrocos, principiava a adormecer nos ócios da
paz. O argentino afirmava que Alexandre também tinha as suas ideias sobre o
assunto e, Rogério ia ter ensejo de expor as suas.
O belga ficou um pouco atrapalhado.
Não tinha ideias para dar. Embora Lopes andasse, nos últimos tempos, a
incitá-lo à fuga, o certo é que apenas se decidira no dia anterior. Até então,
mal pensara nos meios a empregar para pôr em prática um plano daquela natureza.
Não queria saber dos planos. Descansava plenamente no Lopes e no Alexandre.
Eles tinham imaginação para essas coisas; que as pusessem a trabalhar.
Limitar-se-ia a executar o que lhe ordenassem.
Naquele momento, com tremendo calor
de Junho, que o fazia suar por todos os poros, só lhe apetecia uma cerveja bem
fresca.
- E eu bebo outra! – Concordou o
argentino, tomando-o pelo braço e arrastando-o para o interior da cantina.
Com grande surpresa sua, encontraram
Alexandre já abancado a um canto, perante um “bock” espumoso. Na sala, havia mais alguns camaradas, mas, como de
costume, o misterioso cabo procurava o isolamento.
O argentino, numa expressão bem
meridional, alçou os braços no ar, num espanto.
- “Hombre”!- Exclamou – Chegaste
com uma hora de avanço!
Alexandre sorriu, estendendo-lhe
silenciosamente a mão, que o argentino apertou com violência. Rogério
cumprimentou-o, cheio de respeito.
Abancaram. Uma “Camarera” mais pintada que um palhaço chegou-se ao grupo, na
esperança de uma lambarice. – Vamos ver quem é o herói capaz de me pagar um
refresco! – Exclamou ela, procurando ajeitar-se para tomar lugar entre Rogério e
Paulo. Este teve, porem, um gesto de impaciência e afastou-a. – Desampara-nos a
loja! – Pronunciou ele, de sobrolho carregado. – Temos assuntos muito
importantes a tratar. – Ah! Não sabia que vocês pertenciam ao Estado-Maior –
Replicou a rapariga. – Vão acertar o plano da próxima campanha… - O nosso plano
é mais importante do que pensas – tornou o argentino, de mau modo. A “Camarera” afastou-se, resmungando e,
foi exibir as suas graças junto do grupo que, no lado oposto, já parecia bem
animado, pois tinha a mesa cheia de copos e garrafas. Ma não deixava de deitar
olhares desconfiados aos três legionários.
Sorvidos os primeiros goles de
cerveja, logo o Lopes se inclinou para a frente e começou a cochichar sobre o
assunto que o obcecava; A deserção.
Alexandre ouviu em silêncio. Depois
dirigindo-se a Rogério, perguntou-lhe: - Que dizes a isto, camarada? O rapaz
corou como qualquer donzela, encolheu ligeiramente os ombros e replicou; -
Estou disposto a segui-los, para a vida e para a morte… Já dei ontem a minha
adesão.
O outro pareceu ficar contente com
aquela resposta e, apoiando-o lentamente com a cabeça, disse; - gosto desse
espirito resoluto. Na verdade, a aventura em que nos vamos meter não é
brincadeira. Não se trata de assaltar uma “cabila
rifenha”. É coisa muito pior.
Calou-se, com o olhar vago, como se,
subitamente o seu pensamento fugisse para muito longe, lá para o Egipto remoto,
que o argentino pensava em alcançar com facilidade. Pela maneira como falou, Rogério
adivinhou logo nele o chefe, o homem capaz de conduzir a bom termo, aqueles que
nele confiassem.
Lopes começou a expor, entre dentes,
pormenores do plano. Fugiriam disfarçados de mouros. Já assegurara três
vestimentas brancas e as respectivas babuchas, por umas escassas moedas. O
mercador árabe que lhas vendera prestara-se a guardá-las até ao momento em que
decidissem utilizá-las. Era um homem recto, podia depositar-se nele um segredo
como num túmulo.
Por ele, ninguém saberia que
utilizariam tal disfarce para fugir.
Pajovi Julho
2013