Este texto é da autoria de Joana Amaral Dias
Publicado no DN em 19 Fevereiro 2023 — 00:27
“Quando é que a
república portuguesa passa a ser laica? Ainda falta muito? Lá que tal seria uma
bela comemoração dos 50 anos do 25 de abril, lá isso seria. Fica a sugestão.
Por exemplo, só nestes últimos dois anos, Estado e câmaras transferiram quase
800 milhões de euros para a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). As
obrigações sistemáticas que os cofres públicos têm com a religião do Vaticano
fazem os palcos da Jornada Mundial da Juventude parecer um copinho de leite.
Em 2004, Portugal
renovou a chamada Concordata. Esse acordo atribuiu numerosos privilégios e um
inaceitável regime de excepção à ICAR que não devia gozar de mais benesses do
que os benfiquistas. Afinal também dizem que são seis milhões e nem por isso
devem ter mais direitos do que portistas, sportinguistas, a liga dos últimos,
ou a cientologia. Numa sociedade moderna, aberta e plural com separação entre
a(s) Igreja(s) e o Estado, a melhor concordata é nenhuma concordata.
Em 1976, a
Constituição determinou o princípio da arreligiosidade do Estado que não pode
promover uma religião, discriminar ou privilegiar em função dela. Ou seja, a
Concordata é incompatível constitucional e politicamente com o regime, fere
princípios de universalidade e igualdade de direitos e de obrigações. É um
tratado de Tordesilhas imposto pelo clero.
O justo é a
liberdade religiosa onde cada um é livre de escolher e todas as confissões são
iguais. É isto que distingue a modernidade do Antigo Regime, em que havia uma
religião oficial de Estado. Isto é a laicidade.
Num país laico faz sentido que uma
instituição de ensino superior como a Universidade Católica (UC), que factura
dezenas de milhões de euros anualmente, usufrua de diferentes vantagens,
inclusive borlas fiscais ou apoios estatais?! Portanto, cobra propinas de
privada, mas paga impostos de pública. Isto é razoável?! A UC é sem impostos e
sem vergonha? Os padres abusadores são apenas 5% e a fuga ao fisco só 23%?
Veja-se outra bizarria da
concordata - artigo 15: "A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica
sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que
contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não
valerem da faculdade civil de requerer o divórcio". Portanto, a dissolução
do casamento pelo Vaticano obriga Portugal a acatar a decisão de outro, fazendo
de um Estado soberano mero protectorado de uma teocracia.
Acontece que os privilégios da ICAR não se
limitam aos estabelecidos na Concordata. Ao longo destes 50 anos, continuou a
acumular novas benesses, desde a presença protocolar especial nas cerimónias
oficias, passando pela situação única da Rádio Renascença, pelo aumento das
isenções fiscais e pelo financiamento público de equipamentos especificamente
religiosos. Por isso é que, entre os tais 800 milhões constam as despesas que
os munícipes lisboetas pagaram recentemente por uma igreja nova (€3,52 milhões)
ou a factura pesada liquidada pelos escalabitanos pela Igreja de Santa Iria. Os
bens são da ICAR, as despesas são dos bolsos de todos nós, católicos ou de
outras confissões, anticlericais ou apenas laicos.
Cumpra-se abril, não é assim
que costuma bradar? Seria bonita a festa, pá.”