quarta-feira, 29 de maio de 2013

AVENTURAS DE DOIS AMIGOS – PARTE 2

Entre os veteranos, contavam-se dois homens, no agrupamento, que ninguém sabia ao certo quem eram, nem de onde tinham vindo. Falavam correctamente o inglês, mas ninguém os supunha ingleses ou norte-americanos, dado a impossibilidade dos naturais destas nacionalidades se alistarem. Um deles, Alexandre. O mais velho franzino e nervoso, tez morena ou crestada pelo Sol africano, olhos castanhos penetrantes, face chupada e ossuda, devia ter entre trinta e cinco a quarenta anos. Já estava no agrupamento há oito anos. As balas fugiam-lhe, embora ele nunca se desviasse para lhes dar passagem.
                Quando lhe perguntavam qual a sua verdadeira nacionalidade, Alexandre sorria e encolhia os ombros. Inscrevera-se como checo, mas, um dia, confessara inadvertidamente a outro checo, com quem aliás falava sempre em alemão, que gostaria de visitar a República Checa. Contudo, os seus papéis eram Checos. Como checo o inscreveram no agrupamento as autoridades Espanholas. O seu nome, porém, era do mais vulgar súbdito de Sua Majestade Britânica; Alexandre Smith. Por comodidade os companheiros passaram a chamar-lhe apenas Alexandre.
                Era um dos elementos mais antigos da Legião Estrangeira e parecia disposto a nunca mais de lá sair, a não ser que a morte irritada com o seu desafio constante, resolvesse levá-lo um dia.
                Bom militar, inteligente, disciplinado, cometendo serenamente actos de espantosa temeridade, Alexandre, contudo, nunca subira além de cabo e parecia não ter maiores ambições. Condecorado várias vezes, mostrava-se indiferente às honrarias. No entanto, toda a gente lhe reconhecia excepcionais qualidades para subir de posto se quisesse. Era uma coisa bem patente. Não queria sair da obscuridade. Se quisesse poderia ser alferes. Os seus superiores não o contrariavam, deixavam-no permanecer naquele posto humilde, onde aliás era de grande utilidade.
                Alexandre percebia de tudo. Ninguém sabia até onde iam os seus conhecimentos. Não havia problema de mecânica que não resolvesse e quando às vezes, os técnicos, perante uma metralhadora encravada ou um avião imobilizado, cruzavam os braços, dizendo, como médicos perante uma enfermidade incurável, que nada havia a fazer, chamava-se o Alexandre, em último recurso, quase sempre quando já estavam perdidas todas as esperanças e Alexandre consertava facilmente a metralhadora e punha o motor do avião a funcionar.
                Um dia, o capitão que era ríspido e não tinha papas na língua, perguntou-lhe; Homem, tu és engenheiro? Alexandre sorriu, com o seu ar misterioso e respondeu, com estranha humildade; Apenas aprendi alguma coisa de funileiro. Mas a verdade é que Alexandre tinha uma cultura pouco vulgar; Comprazia-se em dissimulá-la, apenas fazendo, de quando em quando, surpresas aos companheiros.
                Falava inúmeros idiomas; Espanhol como um verdadeiro Castelhano, o francês e o inglês não tinham segredos para ele. Dois russos que havia na companhia só com ele se deliciavam a falar a língua materna e afirmavam que ele tinha uma pronúncia perfeitamente moscovita. O inglês era o idioma em que se exprimia mais correntemente, mas não se sabia ao certo quantas línguas ele dominava. Se na sua presença, se falava de Anatomia, de Química, de História, de Geografia ou de Etnografia das regiões mais exóticas, Alexandre falava delas com simplicidade, revelando uma erudição que deixava os companheiros assombrados.
                Era muito metido consigo próprio. Raras vezes se embriagava e fumava que nem uma chaminé, por um cachimbo muito queimado. Contava com amizades em toda a Companhia, mas ninguém se podia gabar da sua intimidade. Havia nele sempre qualquer coisa de inacessível e andava geralmente só. O único que se via mais vezes com ele, em conversas longas e gesticuladas era Paulo Lopes, o Argentino. Mas quem poderia resistir à loquacidade e simpatia de Lopes? Nem Alexandre! O Lopes era o homem mais falador da Legião estrangeira e por falar demais, algumas vezes fora castigado. Nem mesmo quando era sentenciado a trazer às costas um pesado saco cheio de arei do Deserto, saco que nem durante as refeições lhe era retirado, o Lopes se calava. Cumpria falando, esta pena bárbara a que algumas vezes o condenaram por falar demais. Se me calo rebento! Dizia ele, com os grandes olhos escancarados, no terror de lhe porem uma mordaça.
                O Paulo ia no quarto ano de servidão na Companhia. Apanhara apenas dois anos de guerra. Depois, cessaram as hostilidades e ele sentia-se logrado. Vim aqui para combater e não para fazer vida de camponês! Berrava ele, em protesto. Contratara-se por cinco anos. Tinha de ir até ao fim, sem fazer uso da espingarda, que fora substituída pela charrua. Os legionários eram agora uns lavradores militarizados e aborreciam-se daquela vida.
                Paulo Lopes não tinha medo em confessar que a sua vontade era fugir. Não viera a Marrocos para viver em paz. Ele pertencia ao número dos que se alistaram por espírito de aventura. Vivia folgadamente na sua terra. O seu pai possuía boas propriedades na Argentina e uma esplêndida vivenda em Buenos Aires. Pra fazer vida de camponês, tinha ficado a trabalhar na terra do pai. Viera para combater. Era esse o contrato. Se não lhe davam ensejo de combater, é porque o Governo de Espanha faltava ao contrato. Estava, portanto, rescindido, por falta de uma das partes…
                Os oficiais riam-se dos protestos do Argentino. Sabiam que ele era sincero na sua indignação, porque se mostrara sempre um bravo, nunca voltando a cara ao perigo.
                As ameaças de deserção do Argentino, porém pareciam brincadeira. Toda a gente sabia que muitos desertores tinham pago com a vida a temeridade de fugir. Brigadas de perseguição partiam no encalço dos fugitivos e sucedia algumas vezes, que os matavam, sem querer é claro. Os que escapavam eram condenados a uma vida tão miserável que só lembrar causava horror. Outros que conseguiam escapar aos perseguidores, não conseguiam não conseguiam salvar-se de outro perigo maior; O implacável deserto, onde muitos morriam de sede e de fome.
                Não, não era fácil fugir da Legião Estrangeira. A prudência aconselhava a aguardar pacientemente o fim do contrato, tanto mais que concluídas as hostilidades, havia cerca de um ano, a vida não era má e decorria com calma.
                Entre os que escutavam a algaraviada do Argentino, sobre a vida aborrecida que ultimamente se levava na Legião Estrangeira, estava um rapagão espadaúdo e alto, um maravilhoso atleta da Companhia, que tinha um génio folgazão e uns músculos temíveis. Chamava-se Rogério, dizia-se Belga e falava mal o francês. Era mais um paradoxo daquele ambiente de aventureiros. Porque razão o belga falava tão mal o francês e se exprimia tão bem em espanhol e inglês? Os seus colegas pouco o assediavam com perguntas a tal respeito, porque ali o passado de cada um, é coisa sagrada na qual ninguém toca. Se Rogério era um bom companheiro, valente como poucos, forte como um búfalo um pouco ingénuo, como se fosse um menino muito grande, isso bastava à curiosidade dos camaradas, que admiravam os seus feitos desportivos e algumas façanhas heróicas  praticadas, afirmava ele, sinceramente, sem dar por isso.
                Rogério pouco se dava com Alexandre. Tinha por ele um respeito muito grande e sentia-se tímido ao seu lado. Durante os seis anos que já vivera na Companhia, podiam-se contar pelos dedos as vezes que falara com o erudito camarada e este nem parecia dar pela sua presença, pois talvez não compartilhasse da admiração geral pela força extraordinária do belga.
                Em compensação, principalmente nos últimos tempos, Rogério e o argentino tinham-se tornado unha com carne. Onde estivesse um estava o outro.


Pajovi   Maio 2013

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