Entre os veteranos, contavam-se dois homens, no agrupamento, que
ninguém sabia ao certo quem eram, nem de onde tinham vindo. Falavam
correctamente o inglês, mas ninguém os supunha ingleses ou norte-americanos,
dado a impossibilidade dos naturais destas nacionalidades se alistarem. Um
deles, Alexandre. O mais velho franzino e nervoso, tez morena ou crestada pelo
Sol africano, olhos castanhos penetrantes, face chupada e ossuda, devia ter
entre trinta e cinco a quarenta anos. Já estava no agrupamento há oito anos. As
balas fugiam-lhe, embora ele nunca se desviasse para lhes dar passagem.
Quando lhe
perguntavam qual a sua verdadeira nacionalidade, Alexandre sorria e encolhia os
ombros. Inscrevera-se como checo, mas, um dia, confessara inadvertidamente a
outro checo, com quem aliás falava sempre em alemão, que gostaria de visitar a
República Checa. Contudo, os seus papéis eram Checos. Como checo o inscreveram
no agrupamento as autoridades Espanholas. O seu nome, porém, era do mais vulgar
súbdito de Sua Majestade Britânica; Alexandre Smith. Por comodidade os
companheiros passaram a chamar-lhe apenas Alexandre.
Era um dos
elementos mais antigos da Legião Estrangeira e parecia disposto a nunca mais de
lá sair, a não ser que a morte irritada com o seu desafio constante, resolvesse
levá-lo um dia.
Bom militar,
inteligente, disciplinado, cometendo serenamente actos de espantosa temeridade,
Alexandre, contudo, nunca subira além de cabo e parecia não ter maiores
ambições. Condecorado várias vezes, mostrava-se indiferente às honrarias. No
entanto, toda a gente lhe reconhecia excepcionais qualidades para subir de
posto se quisesse. Era uma coisa bem patente. Não queria sair da obscuridade.
Se quisesse poderia ser alferes. Os seus superiores não o contrariavam,
deixavam-no permanecer naquele posto humilde, onde aliás era de grande
utilidade.
Alexandre
percebia de tudo. Ninguém sabia até onde iam os seus conhecimentos. Não havia
problema de mecânica que não resolvesse e quando às vezes, os técnicos, perante
uma metralhadora encravada ou um avião imobilizado, cruzavam os braços,
dizendo, como médicos perante uma enfermidade incurável, que nada havia a
fazer, chamava-se o Alexandre, em último recurso, quase sempre quando já
estavam perdidas todas as esperanças e Alexandre consertava facilmente a
metralhadora e punha o motor do avião a funcionar.
Um dia, o capitão
que era ríspido e não tinha papas na língua, perguntou-lhe; Homem, tu és
engenheiro? Alexandre sorriu, com o seu ar misterioso e respondeu, com estranha
humildade; Apenas aprendi alguma coisa de funileiro. Mas a verdade é que
Alexandre tinha uma cultura pouco vulgar; Comprazia-se em dissimulá-la, apenas
fazendo, de quando em quando, surpresas aos companheiros.
Falava inúmeros
idiomas; Espanhol como um verdadeiro Castelhano, o francês e o inglês não
tinham segredos para ele. Dois russos que havia na companhia só com ele se
deliciavam a falar a língua materna e afirmavam que ele tinha uma pronúncia
perfeitamente moscovita. O inglês era o idioma em que se exprimia mais correntemente,
mas não se sabia ao certo quantas línguas ele dominava. Se na sua presença, se
falava de Anatomia, de Química, de História, de Geografia ou de Etnografia das
regiões mais exóticas, Alexandre falava delas com simplicidade, revelando uma
erudição que deixava os companheiros assombrados.
Era muito metido
consigo próprio. Raras vezes se embriagava e fumava que nem uma chaminé, por um
cachimbo muito queimado. Contava com amizades em toda a Companhia, mas ninguém
se podia gabar da sua intimidade. Havia nele sempre qualquer coisa de
inacessível e andava geralmente só. O único que se via mais vezes com ele, em
conversas longas e gesticuladas era Paulo Lopes, o Argentino. Mas quem poderia
resistir à loquacidade e simpatia de Lopes? Nem Alexandre! O Lopes era o homem
mais falador da Legião estrangeira e por falar demais, algumas vezes fora
castigado. Nem mesmo quando era sentenciado a trazer às costas um pesado saco
cheio de arei do Deserto, saco que nem durante as refeições lhe era retirado, o
Lopes se calava. Cumpria falando, esta pena bárbara a que algumas vezes o
condenaram por falar demais. Se me calo rebento! Dizia ele, com os grandes
olhos escancarados, no terror de lhe porem uma mordaça.
O Paulo ia no
quarto ano de servidão na Companhia. Apanhara apenas dois anos de guerra.
Depois, cessaram as hostilidades e ele sentia-se logrado. Vim aqui para
combater e não para fazer vida de camponês! Berrava ele, em protesto.
Contratara-se por cinco anos. Tinha de ir até ao fim, sem fazer uso da
espingarda, que fora substituída pela charrua. Os legionários eram agora uns
lavradores militarizados e aborreciam-se daquela vida.
Paulo Lopes não
tinha medo em confessar que a sua vontade era fugir. Não viera a Marrocos para
viver em paz. Ele pertencia ao número dos que se alistaram por espírito de
aventura. Vivia folgadamente na sua terra. O seu pai possuía boas propriedades
na Argentina e uma esplêndida vivenda em Buenos Aires. Pra fazer vida de
camponês, tinha ficado a trabalhar na terra do pai. Viera para combater. Era
esse o contrato. Se não lhe davam ensejo de combater, é porque o Governo de
Espanha faltava ao contrato. Estava, portanto, rescindido, por falta de uma das
partes…
Os oficiais
riam-se dos protestos do Argentino. Sabiam que ele era sincero na sua indignação,
porque se mostrara sempre um bravo, nunca voltando a cara ao perigo.
As ameaças de
deserção do Argentino, porém pareciam brincadeira. Toda a gente sabia que
muitos desertores tinham pago com a vida a temeridade de fugir. Brigadas de
perseguição partiam no encalço dos fugitivos e sucedia algumas vezes, que os
matavam, sem querer é claro. Os que escapavam eram condenados a uma vida tão
miserável que só lembrar causava horror. Outros que conseguiam escapar aos
perseguidores, não conseguiam não conseguiam salvar-se de outro perigo maior; O
implacável deserto, onde muitos morriam de sede e de fome.
Não, não era
fácil fugir da Legião Estrangeira. A prudência aconselhava a aguardar
pacientemente o fim do contrato, tanto mais que concluídas as hostilidades,
havia cerca de um ano, a vida não era má e decorria com calma.
Entre os que
escutavam a algaraviada do Argentino, sobre a vida aborrecida que ultimamente
se levava na Legião Estrangeira, estava um rapagão espadaúdo e alto, um
maravilhoso atleta da Companhia, que tinha um génio folgazão e uns músculos
temíveis. Chamava-se Rogério, dizia-se Belga e falava mal o francês. Era mais
um paradoxo daquele ambiente de aventureiros. Porque razão o belga falava tão
mal o francês e se exprimia tão bem em espanhol e inglês? Os seus colegas pouco
o assediavam com perguntas a tal respeito, porque ali o passado de cada um, é
coisa sagrada na qual ninguém toca. Se Rogério era um bom companheiro, valente
como poucos, forte como um búfalo um pouco ingénuo, como se fosse um menino
muito grande, isso bastava à curiosidade dos camaradas, que admiravam os seus
feitos desportivos e algumas façanhas heróicas praticadas, afirmava ele,
sinceramente, sem dar por isso.
Rogério pouco se
dava com Alexandre. Tinha por ele um respeito muito grande e sentia-se tímido
ao seu lado. Durante os seis anos que já vivera na Companhia, podiam-se contar
pelos dedos as vezes que falara com o erudito camarada e este nem parecia dar pela
sua presença, pois talvez não compartilhasse da admiração geral pela força
extraordinária do belga.
Em compensação,
principalmente nos últimos tempos, Rogério e o argentino tinham-se tornado unha
com carne. Onde estivesse um estava o outro.
Pajovi Maio 2013